NICLES BATATÓIDES
Espaço Exibicionista Galeria - Lisboa
8 a 30 de Setembro 2023
“Pêssegos, peras, laranjas, morangos, cerejas, figos, maçãs, melão, melancia, ó música de meus sentidos, pura delícia da língua; deixai-me agora falar do fruto que me fascina, pelo sabor, pela cor, pelo aroma das sílabas: tangerina, tangerina.”
Eugénio de Andrade
Na vida de campo cabem muitos lugares, há labor – lavrar, semear, plantar, fertilizar, podar, cultivar, capinar, enxertar, colher, regar, adubar, compostar… uma trabalheira! – mas também há repouso. Há um banco coxo, um espantalho que mete medo ao susto, um escadote escaqueirado com tábuas de madeira carcomidas, troncos encarquilhados e retorcidos sobre si mesmos, uma cadeira marreca, entre outros trambolhos escangalhados, toscos ou raquíticos. À sombra da latada ouvem-se delicadas melodias de aves onde as tertúlias de boa conversa se prolongam acompanhadas por patuscadas, um banquete de copos lascados com chá de parreira ou um refrescante jarro de tisanas com folhas lanceoladas de lúcia-lima e hortelã. À mesa, improvisa-se o departamento da agricultura com bicho-carpinteiro: partilha-se receitas e mezinhas para solos ácidos e alcalinos ou como obter um bom terriço, húmus ou matéria orgânica e diz que a minhoca enriquece a terra tornando-a fofa e nutritiva. Discute-se sobre fertilizantes orgânicos, minerais ou mistos, adubos químicos ou sobre o tratamento de pragas – da cochinilha aos bichos-de-conta – e demais maleitas, parasitas e moléstias. Sobre a intensidade de luz, a temperatura, a humidade, o vento e a sua desorientação, o sol, a chuva, a geada, o granizo, e outras encomendas climatéricas. Debate-se sobre podas e enxertias de garfo, escudo, flauta ou coroa. Sementes, bolbos, raízes e tubérculos. Caule, folhas, flores e frutos. Aprende-se sobre a rega gota a gota ou o regadio com caldeira onde nascem ervas com mau feitio.
Aqui, nos lugares de prazer, há sempre o cantinho da horta e das aromáticas, um sobrado com objetos de memórias e afetos gastos, um esconderijo sombrio onde as batatas nunca grelam, uma cabana de chapa improvisada com tranças de cebolas, uma estufa desconchavada, um telheiro de lona com caruncho acompanhado por tralhas acumuladas – o clássico regador de latão corroído, um carrinho de mão remendado, uma sachola desamparada, um baloiço de outra vida, lenha para o aconchego dos dias cinzentos, um balde com água salobra, umas botas de cano ratadas… enfim, um depósito de apetrechos e trambolhos descendentes de um quotidiano rural.
Mas, enquanto houver uma galinha alvoroçada, meninice para trepar e construir uma casa na árvore, abelhas polinizadoras, chuva molha-tolos e o cheiro a terra molhada, pássaros fadistas, uma gata burguesa, cucurbitáceas, gafanhotos saltitantes, flores e frutas de arco-íris com polpa sumarenta e epiderme aveludada, uma nuvem de poeira da terra lavrada e as mãos gretadas, mosquitos – Ai, malditos mosquitos! – e um chapéu de palha desfiada para cabelos desgrenhados, há deleite… prazeres deliciosos, aromas e sabores campestres, elementos naturais para vivências sensoriais.
Na terrinha não se usam só farpelas idosas, desajeitadas, mal-amanhadas, desbotadas ou enxovalhadas, há trapilhos descontraídos e desempoeirados de paleta fauvista – amarelo-girassol, rosa-framboesa, rubi-romã, lilás-lavanda, verde-rosmaninho, violeta-beringela, vermelho-beterraba – que evocam uma herança de figurinos e de tecidos com padrões florais, esféricos, sinuosos ou alinhados, fatiotas com texturas planas, volumétricas, cosmopolitas, kitsch ou deformadas. Qual campónia, uma lufada de ar fresco, portanto!
“Nicles Batatóides” apela a um jogo de palavras através de provérbios com uma perspetiva humorística ou irónica, sugerindo ambiguidades semânticas e uma multiplicidade de sentidos, ou sem sentido algum; alusões inusuais, subtis trocadilhos e graçolas que provocam novos significados. Explora muitas possibilidades, apresentando várias camadas dentro de um olhar despretensioso: ser livre, caótico, mandar às urtigas, pantomineiro ou até ridículo. É a ambivalência entre a usufruição e o esforço do campo, uma salada tutti-frutti e um estendal de legumes, que permite a preguicite aguda, provocando sorrisos descontraídos. “Nicles Batatóides” evoca uma cenografia Pop por meio de uma composição pictórica, teatral e poética, apresentando composições galhofeiras que lembram os elementos decorativos naturalistas bordalianos: uma cesta com fruta bicada e demasiado madura coberta de mosquedo… mas que biodesagradável!
Lara Roseiro
Julho 2023
* texto ficcionado, inspirado em factos surreais e autobiográficos. A exposição tem na sua génese a peça “O Pomar das Cerejeiras” de Anton Tchekov, um apaixonado por ecologia, e a construção do meu próprio jardim e pomar. Qual Pomona, deusa da abundância dos frutos, que se dedica às tarefas de cuidar dos seus jardins verdejantes e viçosos!
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